domingo, 3 de agosto de 2014

O não vivido

Desejo viver minha tristeza até que nada sobre. Mas parece que a tristeza é como a alegria, fluxo que não acaba. Devo simplesmente aceitar este inferno eterno. Pois quem sofre, enquanto sofre, sofre eternamente. Assim como o céu que é eterno enquanto deleita.  O poeta músico entendeu isso e contou para todos.  Afinal, tudo acaba e, enquanto dura, durar é para sempre.  

Quanto dura o lamentoso acabar de algo precisoso, o não aceitar o presente num desejo conflituoso, o arrependimento daquilo que não se foi capaz de fazer?  Quanto dura essa inquietação nervosa, esse soluço dolorido, esse aperto de ar contido,  essa fonte de lágrimas ?  E se eu jogar uma moeda e fizer como os românticos?  Quem estaria ali quando eu abrisse os olhos?  

Por que me acostumei com aqueles passos raivosos, aquela impaciência declarada, aquele olhar distante, aquele aperto de mãos relutante? Por que me vendi por um sonho à dois e inventei-me metade de mim na esperança de encontrar mais que outro eu ao meu lado?  A resposta, tão simples, ainda não encontra porto aberto. Quanto tempo mais como um porto fechado a este navio com suas novidades temidas?

  
Quando se morre, leva-se a vida não vivida. Agora sei. Ela reclama sua existência como um felino assustado. A vida não vivida arranha, contorce, arrepia.  Gás que se esparge, escapa da contenção.  Vida não vivida mata mais depois da morte do que antes!  Coloque a mão nesse saco de negligências. Estou tão cheio dessa vida não vivida que até o irreal se tornou palpável. E sou todo irreal. 

Você me disse que eu deveria escolher viver.  Mas como morre aquilo que ainda não viveu?  Sim, claro!  Sou eu que dou forma. Sou eu que crio propósito. Sou eu que alimento o nada. Informação continua. Matéria sem massa. Seguirei seu conselho. Mas não se trata exatamente de escolher a vida. O que se escolhe é a não vida.  A vida viceja sem escolha. A vida não é o que adentra a forma como se poderia dizer.  Seguir seu conselho impossível é, ao mesmo tempo, não segui-lo. Que seja! 

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

DNA

Escutei seus devaneios, toda sua mágoa destilada em fantasias do que poderia dizer na ocasião propícia. Até mesmo você é capaz de perceber o quão superficial seriam suas palavras. Seu saltitar entre o re-sentir e a auto comiseração devem estar te cansando, ou não?  Sim, até você percebe. Pois me deixe te perguntar, companheiro: quais palavras suas seriam memoráveis?  Você sabe, existem homens que escreveram o que permanece por séculos, milênios até. Mesmo que diga que isso é um perdurar, mesmo que exista uma história que permanece por milhões de anos, mesmo que, de alguma forma, uma história adentre nossas células, se torne parte de nossa pequena contribuição humana ao DNA do corpo, o que teria de força nessa suas palavras?  Olhar isso, perceber o infinitesimal disso, assim deste modo, é mais, é maior do que se perceber pequeno diante de um céu estrelado. Até os físicos e matemáticos, quando pensam em algo insignificante, imaginam algo com mais quantidade ou qualidade do que essas suas possíveis palavras. E ainda assim só há um maneira eficaz para que você se cale. Admitir, mesmo que lhe seja apenas uma hipótese, que você irá deixar de existir em algum momento.  De nada adianta eu lhe dizer que algo que acontecerá, para todos os fins práticos já acontece. Essa é mais uma chave para perceber minha presença.   Não é uma invocação. É uma técnica para deslocar sua atenção. Quando quiser falar algo, se pergunte : isso que direi irá ficar gravado a fogo no coração da existência ou se dissipará como mais uma entidade parasita que dura apenas o tempo de sua própria dor? O fígado da existência trabalha sem descanso. O humano em nós é tão pouco ... percebe que a mente é um icebergue invertido?  E no humano em nós, aquilo que eu chamo de consciência é a ponta de outro icebergue escondido!  O humano é como um rejeito da existência.  A consciência é como se fosse o rejeito do humano. É algo maravilhoso que a existência adentre aquilo que ela mesmo acumula como algo a parte.  Nunca é totalmente.   É apenas uma concentração muito teimosa esse algo a parte. Mas então a existência adentra essa teimosia, essa coisa  humana.  Não há como evitar.  Um coração dentro de outro. Um fígado dentro de outro!  E o humano rejeita esse presente. Não falo de algo dado, de dádiva. O humano rejeita o que é presente!  Por isso a consciência que surge não é humana... e se encanta com a existência! Claro que essa também é uma história. Basta que, para nós, ela perdure o suficiente.