sábado, 30 de novembro de 2013

Antes que a alma volte ao corpo, o fantasma deve desaparecer.

Essa é uma carta de alerta.  Todas deveriam ser.  Afinal, o mundo é território de predadores.  Você não deveria se esquecer disso e, muito menos, agir como se também não fosse um predador.  O alerta é um chamado.  Olhar acima do linha do horizonte.  Olhar abaixo disso te causa náuseas.  O perigo está a frente, não abaixo.  Pelo menos para sua espécie.  O que você espera?  Minas escondidas?  Você já explodiu tantas vezes assim?  Você avança num terreno aberto por onde cruzam projéteis de franco-atiradores...você cruza entre duas trincheiras... e está mais preocupado com possíveis explosivos enterrados?  Você só pode estar querendo levar uma bala na cabeça!  Em primeiro lugar, andar em terreno minado é coisa para observadores plenos.  É preciso perceber detalhes de poeira, folhas, reconhecer o padrão até das sombras nas menores diferenças topográficas para suspeitar com propriedade de um canto.  Você... esse você que aqui está, deveria morrer algumas vezes antes de sequer começar a pensar em atingir a atenção mínima para realizar um ato desses.  Não se envergonhe.  Você é lastimável demais para isso.   Te vejo usando sua auto-piedade para subir sua montanha e atirar-se em suas almofadas fofas que te esperam como um bebê digno de cuidados.  Quando foi mesmo que você começou a balbuciar esse cântico lamurioso?  Você nem mais se lembra.  Claro, seu cérebro definha diante dessa ridícula perda de energia.  Mas você tem dormido, apesar de seus sonhos serem uma tentativa desesperada de seu copo organizar seu dia patético.  Sorte sua ter um corpo.  Pois direi a ele, ainda que através de você. Ainda que te dê esse alerta.   Não dê atenção a esse animal, querido corpo.  Persista.  Quando finalmente este animal morrer numa ação hepática, eu estarei aqui. Eu, esse arremedo de alma, forjado em momentos de sua paz.  Você estará em paz, corpo meu, e me acolherá mais uma vez.   Por isso falo a você e a ele.  Ele deve estar confuso, ao ser chamado de animal, querido corpo.  Veja, animal, falo contigo e você nem mesmo entende do que é feito.  Pois te digo.  Você é feito de matéria fantasma, é um verme, um parasita. Adeus.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Gravidade

Qual o peso que você pesa?  Parece tola essa pergunta, mas no filme Gravidade ela cabe muito bem.  Assim como cabe outra pergunta bem mais caprichosa: qual é seu lugar?  Caprichosa porque no imenso espaço não há muitos lugares para nós. O espaço é terrivelmente limitante, sufocante, apertado, ínfimo para nossos corpos. A vastidão do espaço é lugar nenhum. Nosso lugar é maior que todo esse espaço.  Pois lugar tem haver com acolhimento.  O espaço é uma virtualidade material.  Como é pequena essa vastidão !  O espaço nem é aridez total, nem mesmo um deserto, nem uma esterilidade completa. Não é falta de qualquer coisa.  É falta até mesmo de faltar algo.  E nesse espaço acabamos por criar lugares, mesmo os vazios.  Fincamos bandeiras.  Construímos nossas casas, estações, planetas. Aí também fincamos nossos desertos e oásis.  Onde você está?  Onde você escolhe estar?  O filme joga o tempo todo com a dualidade pesado e leve, com o peso dos acontecimento e com o peso que você dá a eles.  Há mais que a metáfora do nascimento e renascimento. Há uma imensa vontade implícita aí. É preciso querer. É preciso vontade.  E se você queimar nessa ação da vontade, ainda assim vale a pena.  Todo lugar é forjado com vontade.  Eu preciso deixar você ir. Preciso escolher o perigo. Preciso me livrar dessas roupas. Preciso mergulhar como um kamikaze. Preciso inundar esse espaço e  buscar a superfície aerada. E mais. Preciso me colocar em pé e reivindicar meu lugar escolhido. Dar meu passo nessa Terra-lugar-meu em que me agiganto. 
Eu, tão pequeno, imenso em meu lugar acolhido.
Passo pelo fogo, pela água e, tomando ar, me ergo sobre a terra.  Aqui está a metáfora da descida dos anjos na matéria.  Está a metáfora do nascimento do homem.  Mas está algo mais simples ainda, um prodígio da vontade. A vida que conhecemos é um milagre. Qual a chance de você estar vivo? A única chance razoável que você tem é aquela na qual o universo conspira para isso. E ele o faz de acordo com sua vontade. Pois então, aproveite cada por de sol! Aproveite cada golfada de ar em seus pulmões!  Use sua vontade!  Se ela estiver em sintonia com o universo então você criará mundos.  Terá consciência.  
Veja que vida incrível! A superfície de nossa cápsula está em chamas.  Estamos caindo, estamos rodando a esmo. Estamos sendo resgatados e estamos resgatando nossa vontade.  Estamos respirando. Estamos respirando e celebrando o chão que se aproximou de nós. Usamos toda nossa gravidade para que esse lugar viesse até nós, fosse atraído.  Veja, atraímos um planeta!  Nós, tão leves , atraímos esse colosso.  Nossa gravidade faz ele permanecer aos nossos pés.  Mas essa força fictícia não supera a atração dos abismos espaciais. Um desses abismos revelará um ultimo por de sol. Você estará em paz nesse dia? Porque ele também é hoje. Ele precisa existir em comunhão com seu dia da vontade.  Não é nem uma troca. É uma ação dupla. Cair suavemente e atirar-se decididamente.
Entenda que o espaço é fluido. Sua presença faz o espaço torcer e dobrar a sua volta. Até a luz segue o caminho que sua presença traça no espaço. Em algum momento, e esse momento também é agora, você decidiu criar uma linha cósmica infinita. Um lado você chamou dentro. Outro você chamou fora.  Esse é o mito da queda.  Essa é a crença na separação dos corpos. Adão dormindo sonhando que Eva saiu dele...  
Mergulhar em si mesmo é também subir a montanha. Descobrir isso não é o mesmo que apagar a linha que separa tudo?
Por isso eu sei que você irá aterrizar em seu lugar abençoado.  Porque até quando me afasto você me invoca e ressurjo ao seu lado, o suficiente para que você se escute. Afinal, essas rádios de notícias apenas enchem o ambiente com uivos de cachorros e canções de ninar.  Todas as notícias do mundo apenas nos põe num sono anestésico. Você deve escutar a si mesmo. Escutar o você que é o seu oposto. Afinal, você inventou a linha!  Essa será sua última conversa. E toda conversa é a última.  Mas esta será uma conversão. Aceitar a morte. Querer a vida. Escolher o lugar. Todos os duplos orbitando como estrelas gêmeas. 
O que eu quero? Eu quero todo ar que preciso. Eu quero o chão. Eu quero a vista das estrelas cadentes arrebentando em explosões fantásticas. Eu quero cortar a linha. Afundar e subir, me despir e vestir o mundo. Eu quero uma gravidade que eu possa superar.  Pois também quero ter forças para me por em pé e contemplar a maravilha desse milagre que é respirar profundamente meu lugar, apesar de tudo. Sim, apesar de tudo, poder sentir: estou vivo.