segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Desejo de morte

Você me acompanha nesse texto?  Assim: como se fosse um outro eu, antecipando as palavras, reimaginando-me, atravessando o tempo, ocupando o mesmo espaço psíquico... Me acompanha?

O desejo de morte, o da morte própria, do acabar-se, é um desejo por si mesmo ou é a reação a um descontentamento? Entende a pergunta? O desejo de morte, de acabar-se, é genuíno e existe mesmo em meio ao contentamento da vida, ou é uma reação ao cansaço, à tristeza, uma expressão da melancolia?  Pense nos momentos de tristeza em que esse desejo poderia surgir: ele realmente nasce ou simplesmente se torna evidente, pois, de fato, sempre teria existido?  Isso me leva ao seguinte questionamento: “desejo de morte”, sem motivo, sem descontentamento que o justifique, existe?  Eu sei que se pode argumentar que o que estou apontando muito se parece com a angústia, aquele estado de espírito sem explicação, ainda que feito de carne e sangue humanos… ou mesmo de alma.  Mas não se trata disso. As angústia... não aponta para nenhum lugar. O desejo de morte sim . É um desejo que sabe o que quer. E antes que eu responda o que é isso que esse desejo quer, e prometo responder até o final dessa reflexão, me pergunto: “desejo de morte” é matéria fundamental do corpo?  Faz parte do ar nos pulmões?  Está na água em que vivem as células? Compõe a química do sangue, a eletricidade nos nervos, o calor nos músculos, o tutano dos ossos?  Me fiz entender?  Afinal: nascemos assim? O “desejo de morte” é natural em nós, nos compõe, é indissociável da matéria da qual somos feitos? E esse desejo também compõe aquela matéria sutil que poderíamos chamar de matéria psíquica, aquela que forma o que entendemos como nós mesmos? Confesso que apesar de achar que sim, que o desejo de morte é parte constituinte de nós mesmos, tenho cá minhas dúvidas, pois quando estou contente nem mesmo lembro que estou vivo.  Meu contentamento é desse tipo,  e desconfio que seja assim com todo mundo.  É apenas quando estou triste que penso nesse assunto. Mas, ainda assim, acredito que a resposta seja um sim, que tal desejo seja atávico, ancestral, não localizável, e tal como a mente, ao mesmo tempo produto de atividades químicas e impulsionador dessas mesmas atividades. Como um ouroboro, aquela cobra que come seu o próprio rabo formando um símbolo onde início e fim, causa e efeito se tornam questões sem sentido, o desejo de morte deve ser criador de si mesmo. Mas veja que interessante: quando estou contente nem mesmo lembro que estou vivo. A tristeza, por outro lado, diminui os espaços, delimita os tempos, os dentros e os foras de qualquer coisa, os hojes e os amanhãs. E é na tristeza, com todos esses limites, que penso sobre isso, que reflito e crio estas palavras.  Porque acredito que a tristeza mesma também deseja não ser triste.  E quando isso acontece? Quando a tristeza some?  Faça esse teste, esse exercício: a tristeza termina quando ela finalmente se aceita.   Ela virá novamente, provavelmente de outra forma, pois é muito difícil que nos aceitemos de forma absolutamente completa e, ainda que o façamos, estamos sempre mudando e acrescentando e descobrindo coisas novas sobre nós mesmos. Mas então faça o teste. A tristeza que se aceita, termina.  Será isso que faço aqui com essa investigação sobre o “desejo de morte”?  Estarei em meio ao processo de aceitação que leva ao fim de minha tristeza, ou dessa que agora sinto?  Assim, novamente: essa reflexão seria um efeito colateral desse processo?  Vou fazer uma pequena pausa, pois pode até parecer que eu esteja desviando ou voltando atrás ciclicamente na questão. Continuemos juntos. Falta pouco.  Já vou pincelar os últimos traços dessa reflexão.  Vejamos: a morte é um conceito. Claro que sabemos o que é a morte.  Mas não sabemos por experiência, a priori, de antemão, o que é morrer. Isso é óbvio, apesar de não nada simples. Porque se não sei por experiência própria o que algo é, então esse algo é um conceito, uma descrição. E me diga, se não fosse por medo, você não iria até lá para ver como é?  Viu a guinada que demos aqui? Não? Eu vou repetir para que essa guinada esteja clara: a morte é um conceito simplesmente porque nenhum de nós sabe por experiência própria o que ela seja. E aqui vem a guinada, acompanhe coi cuidado: se não fosse por medo, por medo da morte, você não iria até lá para ver como é?  Entende agora? Não há nada de mórbido nesse desejo. Percebe? Não há nada de mórbido nesse desejo.  Não é nenhum desejo de não viver.  É o contrário.  É o desejo de viver tudo, inclusive o fim.  Eu queria investigar se ele existia por si mesmo. Pois seria fácil assumir que se tratava de um efeito colateral. Você, que me acompanhou até aqui, pode não concordar comigo, mas pôde entender o caminho que tomei, e espero que esta reflexão lhe incentive a fazer o mesmo. O desejo de morte, como eu  o entendo, (lembra que fiquei de dizer o que ele quer?) é um desejo vital, faz parte da vida até mesmo em pleno contentamento. É desejo de experimentar, de ser mais, de viver mais, viver tanto que quer viver… sim, quer viver até mesmo o acabar.  É desejo de desfrutar até mesmo a última gota aonde o universo inteiro deve está concentrado.  Sabe aquele destilado demorado, aquela explosão concentrada que toma por completo os sentidos?  Ah! essa última gota deve ser algo assim. Mas, por outro lado, afinal posso estar enganado,  o desejo de morte poderia ser apenas uma expressão racional de uma perspectiva limitada.  Deixe-me voltar à imagem que criei daquela gota concentrada de vida, aonde a plenitude se manifesta, para explicar isso. No contentamento, quando desfruto de um contentamento, eu talvez já esteja provando esta gota mística.  A plenitude sem limites que a possam calcular.  Talvez seja simples assim, uma experiência  plena que, por isso mesmo, não se perceba a si mesma sendo plena. Aí não há distanciamentos.  Já na tristeza, por outro lado, se  ganha uma perspectiva limitada, se ganha esse olhar racional, distanciado, que pode  inclusive criar um conceito que chamo de “desejo de morte”. Percebeu a sutileza aqui?  Eu entendo que esse desejo é parte constituinte da propria vida, mas é apenas quando me diminuo, quando me limito, quando estou triste, quando vivo menos, que reflito sobre isso.  Ele também fica mais evidente quando aceito minha tristeza.  Mas eu preciso dizer algo: acho que quando estou contente, estou morrendo sem me dar conta disso, porque estou muito ocupado em viver.  Sei que parece até aquelas frases bonitinhas que se trocam nas redes sociais, apesar dela caber como uma luva aqui, não é mesmo?  Tudo bem. Vou trocar mais uma com você:  eu sou feito de perspectivas diversas, de ânimos contraditórios e de uma sensação de estranhamento no mundo. Isto dito assim, não significa nada. Mas deve ser assim com muita gente.  Você se identifica?  Mas então, voltando: essa investigação me levou a essa frase que chamei de bonitinha. Vou dizê-la novamente:  acho que quando estou contente, estou morrendo sem me dar conta disso, porque estou muito ocupado em viver.  Então cabe a pergunta: o que estou fazendo aqui agora?  Fácil: desfrutando menos, vivendo menos, claro!  O desejo de morte é ao mesmo tempo um chamado do tipo: vamos...viva mais! e uma sacudida nos ossos, um desconforto que te faz sair do frio. Quem diria, não?  De tudo que refleti até agora, chego finalmente a isso: o desejo de morte é a vida mesma desejando ser mais!  Afinal, quem aguenta essa vidinha ordinária do dia a dia? A vida quer mais, quer plenitude. Se o desejo de morte não fosse parte integrante em nós, então desconfio que ainda estaríamos escondidos em cavernas. Mas não é isso mesmo? Não é esse desejo que nós lança para fora das cavernas que entramos dia após dia?  Ou você acha que os ambientes em que transitamos não são cavernas?  Eu tenho certeza. Até mesmo pela sensação de segurança que eles me dão. Mas essa é outra conversa. Vamos falar disso na próxima vez?

Um abraço, e obrigado pela companhia.

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